A bússola da paz

Não pode um país que queira crescer e se desenvolver conviver com a insegurança jurídica

 Não pode um país que queira crescer economicamente e se desenvolver socialmente conviver com a insegurança jurídica. Empregos são perdidos, empresas fragilizadas e a renda familiar se esvai. O arbítrio e o que cada um entende por direito passam para diante da cena, produzindo, em muitos casos, a violência como um efeito colateral.

Leis só são dignas desta denominação quando se caracterizam pela imparcialidade, impessoalidade e universalidade.

Nessa perspectiva, é extremamente bem vinda a decisão do Supremo Tribunal Federal ao julgar os embargos declaratórios do julgamento da Raposa Serra do Sol (RR). A questão em discussão era a da validade, ou não, das condicionantes daquele julgamento, de caráter abstrato e universal, para outros casos.

A expressiva maioria dos ministros optou pela resposta afirmativa. O ministro Barroso assinalou que elas tratam dos fundamentos da decisão tomada no caso Raposa Serra do Sol. Fundamentos que criam, portanto, uma base jurisprudencial para qualquer outro julgamento atinente à mesma questão.

A decisão da mais Alta Corte é uma decorrência da Constituição. Desrespeitá-la significa, por sua vez, violar a lei maior do país.

Havia expectativa entre os ditos movimentos sociais e ONGs, assim como do Ministério Público Federal e da Funai, de que essas normas não seriam validadas. Nutriam a esperança de que algumas dessas condicionantes, como a que veda a ampliação das terras indígenas já demarcadas e a que torna obrigatória a consulta aos entes federados (municípios e estados) quando de demarcações, seriam substancialmente mudadas. A expectativa se frustrou. Para o bem da nação, aliás.

Outra expectativa residia na suposta validade particular dessas normas, como se valessem somente para o caso da Raposa Serra do Sol (RR). Trata-se, convenhamos, de esperança infundada, dada a clareza da posição do agora falecido ministro Menezes de Direito, ao assinalar que, doravante, esses seriam os parâmetros.

Nesse sentido, a expressiva maioria dos ministros foi clara. Tais normas deveriam servir de “orientação” para instâncias inferiores do Judiciário e, por consequência, para os órgãos estatais envolvidos. O ministro Teori Zavascki foi cristalino ao discorrer sobre o “efeito universal” destas diretrizes.

A conclusão foi a mesma da AGU, ao declarar que seguiria essas diretrizes, reeditando a portaria nº 303, que deverá regulamentar a decisão do Supremo.

Assim, o governo dá mostras de querer interromper a insegurança jurídica, fazendo prevalecer o domínio das leis e não o arbítrio dos interesses de grupos específicos.

Uma última questão diz respeito ao fato de que a decisão do Supremo não cria “vínculos formais” para outros casos.

Uma coisa é a jurisprudência estabelecida, que passará a nortear casos semelhantes, outra, a vinculação formal. O problema reside no modo de aplicação das normas e não em sua própria aplicação.

O “efeito vinculante” é uma característica das decisões proferidas pelo Supremo com aplicação automática a todos os casos sobre o mesmo tema, como ocorre com Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Ações Declaratórias de Constitucionalidade.

Tal efeito impõe uma obrigatoriedade reforçada aos julgados do STF enquanto Corte Constitucional, permitindo que os cidadãos, diante do descumprimento de uma decisão –seja pelo Judiciário ou pelo Executivo– recorram diretamente ao próprio STF, por meio de um processo específico: a reclamação constitucional.

Ao afirmar que as condicionantes no caso Raposa Serra do Sol não têm efeito vinculante, o STF simplesmente assentou que seus descumprimentos não poderão ser questionados por via da reclamação constitucional, trazendo a discussão de pronto à apreciação da Corte.

Logo, a decisão do Supremo tem efeito “erga omnes”, sendo obrigatoriamente válida para casos semelhantes. Todos devem respeito à Constituição e às normas que dela derivam, explicitadas por nossa mais alta Corte.

KÁTIA ABREU, 51, presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), escreve aos sábados na Folha de S.Paulo