Quem são as vítimas?

Se há uma dívida do Brasil para com os índios, é justo que ela seja paga por todos – não apenas pelos empreendedores rurais

A questão indígena voltou com força ao debate nacional, pelo recente episódio envolvendo a morte de um indígena, em Sidrolândia, em Mato Grosso do Sul, por ocasião de um pedido de reintegração de posse. A tragédia tem a virtude, por boas e más razões, de atrair os holofotes da mídia. Os mais afoitos – e alguns ideologicamente orientados – já procuram caracterizar os “mocinhos” e os “bandidos”. Mas quem são as vítimas?

Os indígenas são vítimas da colonização brasileira, pela ação, no passado, do Estado e da Igreja. São esses os responsáveis pela situação, pela destruição física, cultural e religiosa. Eles não foram – nem são – vítimas da agricultura ou da pecuária. Quando empreendedores rurais são “desapropriados”, eles também se tornam vítimas. Não são responsáveis pelo que ocorreu com os indígenas no passado. Não se repara uma injustiça com outra.

Evidentemente, os indígenas têm direito a uma vida digna. Isso é ainda mais válido, pois se trata de uma minoria que sofreu graves injustiças no passado. Seus objetivos não consistem em caçar e pescar, como seus antepassados, mas em ter condições boas de vida, com saúde, educação, moradia e todos os artefatos que fazem parte da vida moderna. Querem postos de saúde, com médicos, enfermeiros e remédios. Não querem a volta do pajé. Querem melhorar de vida com uma escola pública de qualidade. Eis a realidade que Funai, ONGs e movimentos sociais teimam em não reconhecer.

Em torno de 12,5% do território brasileiro é constituído por terras indígenas. São 105 milhões de hectares, para uma população indígena em área rural de 530 mil, segundo as estimativas mais elevadas. Outros 400 mil computados pelo IBGE são indígenas em centros urbanos. Em certos lugares de conflito, como em Mato Grosso do Sul, na região de Dourados, há um problema de explosão demográfica. Isso se repete em outros locais. Convém ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento do caso da Raposa Serra do Sol, vedou a ampliação de terras indígenas.

Quando se demarca uma terra indígena, demarca-se – e reconhece-se – simultaneamente todo o seu entorno. Não é com uma nova desapropriação, ferindo direitos, que se resolve essa questão. O mais racional é comprar terras para os indígenas, segundo a Lei no 4.132, já usada pela própria Funai no passado – e recusada no presente. Se há uma dívida dos brasileiros para com a população indígena, ela deve ser paga coletivamente, com o dinheiro dos impostos, e não penalizando os empreendedores rurais, que se tornam, eles também, vítimas da atual política da Funai.

Há uma diferença essencial entre desapropriar e expropriar. Na desapropriação, o proprietário rural é ressarcido, de acordo com o valor de mercado, pela terra nua e pelas benfeitorias. No caso das desapropriações indígenas, trata-se de um mero eufemismo, pois ocorre uma verdadeira expropriação. Os empreendedores rurais só são pagos pelas benfeitorias, não pela terra nua. São literalmente abandonados.

A injustiça que sofrem é flagrante. Eles têm títulos de propriedade que remontam a décadas – são muito anteriores à promulgação da Constituição de 1988. Lembremos que o STF considerou essa data, quando julgou o caso da Raposa Serra do Sol, como marco temporal para reconhecer terras indígenas.

Há um foco enviesado ideologicamente no tratamento da questão indígena. Os indígenas são manipulados pela Funai, pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi, órgão da Igreja que segue as orientações marxistas da Teologia da Libertação) e por ONGs nacionais e estrangeiras. Essas entidades seguem um nítido viés anticapitalista, contra a economia de mercado e o agronegócio. Procuram até inviabilizar o desenvolvimento nacional, como temos visto em Belo Monte, usina hidrelétrica em construção constantemente invadida.

Tomemos, agora, o caso em pauta de Sidrolândia. A morte do indígena ocorreu quando era executado um mandado de reintegração de posse posterior a um outro não cumprido – a Polícia Federal, ao executá-lo, fora obrigada a recuar, levando consigo os proprietários, amea­çados fisicamente. Ao ser salvos pela PF, foram obrigados a deixar sua propriedade. Em vez de a polícia executar a reintegração de posse, foram os indígenas que tomaram posse das terras invadidas. O resultado imediato foi o incêndio criminoso da sede da fazenda.

Entre a primeira tentativa de execução do mandado e a segunda, o juiz concedeu dez dias de negociação entre as partes, aí incluindo Funai, Cimi, o Ministério Público Federal e o Conselho Nacional de Justiça. No entanto, Funai, Cimi e as ONGs nacionais e estrangeiras agora alegam que não houve negociação. Negociação, para eles, significa apenas a aceitação de suas condições: a consumação da invasão, em flagrante desrespeito à lei. Entendem que a “negociação” é uma capitulação ante suas demandas.

Se a capitulação não ocorre, ressurgem as ameaças. Elas se consubstanciam em invasões e incêndios. Querem, ao arrepio da lei, que terras com títulos de propriedade, produtivas, lhes sejam simplesmente entregues. Já passou da hora de deixar de falar em “invasão pacífica”, expressão usada para encobrir o que é feito pelas lideranças indígenas e por movimentos sociais. Invasão, por si só, é um ato violento. No caso em questão, segundo a Polícia Federal, foram apreendidos revólveres, arcos e flechas e facões. Nada muito “pacífico”.

O governo atual, sobretudo a ministra chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, decidiu suspender a identificação e demarcação nos Estados do Paraná e do Rio Grande do Sul, num prenúncio do que deveria ser feito em todo o país. A Embrapa foi chamada para introduzir imparcialidade e isenção na discussão. Qualquer Relatório de Identificação e Demarcação da Funai é, além de ideologicamente orientado, focado em sempre dar razão aos indígenas. Prima pela parcialidade. Jamais lhe ocorre que os indígenas possam não ter razão.

Se o novo caminho for trilhado, o país se encaminhará para a pacificação e o reconhecimento dos direitos envolvidos entre as diferentes partes em litígio. Se a ideologia prevalecer e o governo recuar, o caminho estará aberto à convulsão social e a novas tragédias, de indígenas ou de brancos.

 

Denis Rosenfield é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Fonte: Revista Época